Menu

Sem medo de povo

Já vimos este filme 25 anos atrás. Olívio Dutra e Tarso Genro, prefeito e vice de Porto Alegre, eleitos na esteira das Diretas-Já e da Constituinte em 1988, propuseram o Orçamento Participativo (OP). Houve reação contrária da maioria conservadora da Câmara de Vereadores e de setores da mídia e da opinião pública.

 

O OP consiste em ouvir a população em assembleias públicas para elaboração e definição das prioridades de programas e obras que orientam o Executivo municipal naconfecção do orçamento municipal. O Conselho do Orçamento Participativo, formado pela sociedade, organiza as demandas recolhidas da população e as remete ao poder público que, por sua vez, as encaminha à Câmara de Vereadores, última palavra sobre o orçamento público.

 

Em 2014, O Orçamento Participativo, a experiência bem sucedida criada em Porto Alegre em 1989 e hoje reproduzida em 3 mil cidades ao redor do mundo de dezenas de países, foi saudada em plenária da 14ª Conferência do Observatório Internacional de Democracia Participativa acontecida em Canoas, Rio Grande do Sul, de 3 a 5 de junho, com mais de mil participantes de 25 nacionalidades.

 

Disse Olívio Dutra, saudado na plenária como o pai do Orçamento Participativo: “O Orçamento Participativo surgiu da necessidade de discutir a receita pública gerada em Porto Alegre, não só na área urbana da capital como também na rural. Era uma necessidade de incluir a cidadania. Ele queria discutir o papel do poder público não só ao receber essa receita mas ao distribuí-la. O Orçamento deu vez e voz para quem até então não tinha tido vez e voz. O Orçamento Participativo é o caminho para conquistarmos uma sociedade com justiça, igualdade e respeito, mas centrado na dignidade do ser humano”.

 

(Ressalte-se, como registro histórico, que a sabedoria popular, contra a expectativa de muitos gestores municipais, escolheu como prioridade máxima o asfaltamento de ruas de bairros e vilas, em especial onde passavam os ônibus, em vez de postos de saúde ou escolas. A população não queria mais pisar no barro no frio do inverno, queria qualidade de vida imediata e à porta de casa).

 

As críticas e reações ao OP em 1989 e 1990 eram semelhantes às críticas hoje recebidas pela Política e Sistema Nacional de Participação Social, lançados em 23 de maio através do Decreto 8.243 assinado pela presidenta Dilma Rousseff, “com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração e a sociedade civil”.

 

Dizia-se então em Porto Alegre, e diz-se hoje sobre o Decreto da Participação social: “Estão substituindo a Câmara de Vereadores, que perdeu sentido e importância”; “Esse decreto é uma aberração. É uma desfaçatez passar por cima do Legislativo, caixa de discussão e ressonância da sociedade. Quer-se criar um poder paralelo”; “esse decreto é um retrocesso para a democracia brasileira. Leva a uma sentença de morte ao Poder Legislativo”; “o decreto abre o caminho da servidão.”

 

Nada mais republicano e democrático que estimular a participação social e o diálogo entre governos e sociedade. Além disso, conselhos, conferências e outras instâncias existem há muito tempo e estão consolidados na Constituição Cidadã e na democracia brasileira. Como disse o ministro Gilberto Carvalho, “os conselhos existem no Brasil desde 1937 e as conferências desde 1941. Nós temos em mais de 4 mil cidades brasileiras conselhos funcionando. Eles ajudam o prefeito. É conselho da criança e do adolescente, conselho da saúde, conselho do meio ambiente. O decreto apenas regulamenta e estimula a ampliação do que já existe. Não estamos criando nada de novo, este é um decreto regulamentador”.

 

Ou nas palavras do jurista Pedro Abramovay: “Esses conselhos ajudarão o povo a exercer sua democracia. Com eles, todas as vozes serão ouvidas. Esses mecanismos já existem e têm sido importantes para legitimar nossa democracia”. Ou palavras do jurista e professor emérito da Faculdade de Direito de São Paulo Dalmo Dallari: “A nossa Constituição, em seu artigo 1º, fala exatamente sobre essa democracia participativa. É muito importante essa aproximação do povo com o poder. Além de se manifestar e opinar, ele também poderá criticar e propor condições melhores para toda a sociedade”.

 

O Orçamento Participativo completa 25 anos em 2014 e espalhou-se pelo mundo como exemplo de participação social e governo democrático. Foi a partir dele que Porto Alegre foi escolhida sede do primeiro Fórum Social Mundial. Todos os governos de todos os partidos que sucederam o governo Olívio Dutra/Tarso Genro, bem como os governos estaduais pós Olívio Dutra governador do Rio Grande do Sul (1999-2002) continuaram o Orçamento Participativo. Nenhum prefeito de Porto Alegre ou governador do Rio Grande do Sul deixou de incentivar conselhos e conferências e consultar a população sobre o orçamento.

 

Para Pedro Pontual, diretor de Participação Social da Secretaria Nacional de Articulação Social da Secretaria Geral da Presidência, “um dos legados importantes que o governo Dilma vai deixar é a institucionalização dos instrumentos de participação, transformando-os em método de governo”.

 

A Carta de Canoas, fruto da 14ª Conferência do Observatório Internacional de Democracia Participativa (OIDP), declara: “O OIDP manifesta seu compromisso e apoio à Política e Sistema Nacional de Participação Social do Governo brasileiro, lançado recentemente. O mundo precisa de mais e não de menos democracia. Por isso, é dever de nossa geração despertar a vocação cidadã que está dentro de cada indivíduo. É preciso estimular a cultura da participação, aprofundar a democracia direta, fortalecendo as atuais e criando novas ferramentas de participação”.

 

Na reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) no Palácio do Planalto, a presidenta Dilma Rousseff disse: “Nós somos a favor da consulta, a favor da participação de todos os segmentos no processo de estruturação das políticas de governo. Muitas cabeças pensam mais do que a cabeça do Executivo. É uma convicção que nós temos”.

 

Não há por que temer o povo e sua voz. Um Brasil democrático depende de um povo que faz escolhas, discute e debate alternativas, pensa o futuro. Isso é democracia, que sempre faz bem à saúde econômica, social, ambiental e cultural.

 

* Selvino Heck, assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República, é também secretário executivo da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.