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A transição ecológica precisa de novos sujeitos sociais e mais imaginação democrática

Intervenção de Gerson Almeida na Conferência do OIDP 2022 em Grenoble

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A CIDADE COMO PROMESSA DA BOA VIDA

A cidade é uma promessa de vida melhor. Os homens juntam-se para viverem na cidade e ali permanecem a fim de “viver a boa vida”, disse Aristóteles[1], para quem a cidade, tal como toda a associação, é formada tendo por alvo algum bem. 

Por sua vez, Mumford[2] afirma que o impacto do exercício de experiências compartilhadas oportunizado pela vida nas cidades, recompôs a vida aldeã dos camponeses num padrão mais complexo e instável.

Esse padrão foi resultado da   contribuição de diferentes tipos que passaram a viver nas cidades, como o mineiro, o lenhador, o pescador, o mercador, o soldado, o sacerdote, o engenheiro, etc. Cada qual “levando consigo os instrumentos, as habilidades e os hábitos de vida formados sob diferentes circunstâncias.

Para ele, foi essa complexidade das cidades resultou “numa enorme expansão das capacidades humanas em todas as direções”, ao mobilizar o potencial humano e produzir uma “explosão de inventividade”.

Ou seja, mais do que qualquer outro fator, é a interação inédita entre pessoas com diferentes experiências de vida, cultura, vivências e classes sociais que tornou a cidade uma novidade transformadora, uma experiência humana tão significativa que não pode ser compreendida apenas na sua dimensão econômica e material, já que ela produziu as condições inéditas para a “invenção de direitos e de inovações sociais”[3]

Creio ser importante não perdermos de vista essas maravilhosas potencialidades e realizações da vida nas cidades, diante da grandeza dos desafios presentes, entre os quais se destacam o crescimento das desigualdades e o aquecimento global.

São situações tão graves que estão distanciando a vida na maioria das cidades do sonho da “boa vida”, o que pode estimular a sensação de impotência e fomentar posturas conformistas nas pessoas. Algo mais propício de ser capturado por alternativas não democráticas e salvacionistas, que nunca foram boas soluções.

O nosso primeiro desafio, portanto, é encontrar maneiras de fazer com que o espaço público recupere a vitalidade criativa necessária para reaproximar a vida nas cidades desse ideal da vida boa, algo que requer, entre outras coisas, que as estruturas institucionais dos governos tenham uma configuração mais permeáveis à recepcionar a inteligência dos cidadãos e sejam mais eficazes para estimular e coordenar os processos de participação.

 

Um descompasso preocupante 

Essa permeabilidade das estruturas governamentais é necessária para conseguirmos superar o enorme descompasso entre a velocidade da ocorrência de eventos climáticos extremos e a vagarosa implementação dos acordos feitos para mitigar os efeitos do aquecimento global e enfrentar as desigualdades. Apesar de haver muitas iniciativas inovadoras em curso, nenhuma ainda conseguiu alcançar a escala e o ritmo necessários para evitar que os piores cenários previstos aconteçam.

Esse descompasso gera crescentes incertezas quanto ao efetivo compromisso das pessoas que estão em postos de decisão em mudar o curso atual, apesar de não faltarem os instrumentos legais, o conhecimento sobre as suas causas e, sequer, uma ampla informação sobre as consequências que a demora na tomada de decisões pode acarretar.

Essa preocupação foi expressa na fala do presidente da COP26, Alok Sharma, ao alertar as autoridades que, “nem durante a pandemia as mudanças do clima tiraram férias e todas as luzes do painel climático estão vermelhas”.

Mesmo que os governos nacionais ainda sejam os principais protagonistas nos acordos globais e possuam um papel imprescindível para que as suas metas sejam alcançadas, as cidades possuem um papel reconhecidamente relevante.

Além de consumirem cerca de 70% dos recursos disponíveis e a maior parte da energia gerada, elas emitem grande parte dos gases responsáveis pelo efeito estufa e são onde as desigualdades mais se manifestam. Tanto que a Agenda 2030 reconhece que “o desenvolvimento e a gestão urbana sustentável são cruciais para a qualidade de vida de nosso povo.”

Pois bem. Essa lentidão na implementação das ações previstas nos acordos internacionais suscita uma pergunta fundamental: quais atores precisam ampliar seu protagonismo no processo de tomada de decisão para podermos acelerar a transformação dos objetivos e metas dos ODS em programas e políticas públicas na direção da transição ecológica?

 

 

 

 

As práticas participativas apontam novas possibilidades

De minha parte, creio que a resposta para esta pergunta está sendo construída, em grande medida, nas milhares de práticas de Orçamento Participativo em curso no mundo.

É isto que nos indica o recente estudo feito pela OIDP[4], que, depois de analisar 4400 projetos financiados pelos OP’s em dez cidades, em diferentes contextos, que identificou mais de 900 projetos com impacto na mitigação e/ou adaptação às mudanças climáticas, evidenciando que a “participação do cidadão pode e deve ser uma ferramenta transformadora no combate às alterações climáticas”.

Algo muito interessante, pois o OP foi concebido precisamente para ser uma alternativa ao déficit de participação dos arranjos tradicionais de democracia. Essa capacidade de renovação e expansão para os mais diferentes lugares no mundo e a sua eficácia na produção de alternativas efetivas no combate às alterações climáticas, desafia as repetidas alegações sobre o desinteresse dos cidadãos em participar da vida pública.

Tanto que as diferentes práticas de OP em curso, já envolvem milhões de pessoas em todos os continentes e vultuosas somas de recursos financeiros[5], alcançando cidades do porte de Paris, Madrid, Lisboa, Bolonha, Nova York, Seul, Chengdu e tantas outras.

Outra novidade é o fato do OP ter deixado de ser uma prática exclusiva da gestão nas cidades e ter alcançou o âmbito nacional, como em Portugal e Moçambique, assim como a interessante experiência ocorrida no Peru, a partir de uma lei nacional.

Outra novidade desenvolvida nos últimos anos são as práticas de OP voltadas para as mulheres, para os jovens, para os idosos, para o meio ambiente e para instituições de ensino, de saúde[6], etc. O que conferiu ao OP uma dimensão e escala impossíveis de imaginar quando do seu surgimento e confirmam a sua versatilidade e capacidade de adequação às diferentes realidades.

Esse interesse de participação dos cidadãos, notadamente em relação às temáticas ambientais e de enfrentamento da crise climática é identificado, também, em todas as pesquisas sobre o tema.

Por exemplo, uma pesquisa encomendada pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Brasil, em parceria com o programa de Comunicação de Mudança Climática da Universidade de Yale, feita em 2021[7], apontou que 77% dos brasileiros acham que é importante proteger o meio ambiente, mesmo que isso signifique menos crescimento econômico; além disto, 92% acham que o aquecimento global está acontecendo e 72% acreditam que ele pode prejudicar – e muito – a atual geração.

Outro exemplo é a pesquisa feita pela Economist Intelligence Unit (EIU) a pedido do WWF, que mediu o ativismo digital sobre a questão ambiental ao longo de quatro anos (2016-2020), em 54 países (80% da população mundial). Neste período, houve um crescimento contínuo em pesquisas na internet por produtos sustentáveis (71%), um aumento de tuítes relacionados a causa (82%) e o volume de notícias que abordam o tema e os protestos contra a destruição da natureza, cresceu (60%). Chama a atenção neste estudo o crescimento registrado na Ásia, principalmente na Índia (190%), Paquistão (88%) e Indonésia (53%)[8].

 

A pedagogia social do OP

Um aspecto que não pode ser negligenciado é o caráter pedagógico dos OP’s.

O aprendizado de reunir, discutir e organizar uma ordem de prioridades comuns, em razão da insuficiência de recursos para atender todas as demandas ao mesmo tempo, é um efetivo processo de pedagogia social.

Ao participar dessas experiências, as pessoas precisam exercer um sofisticado processo de acordos, saber estabelecer critérios para hierarquizar as prioridades e projetar ao longo dos próximos anos a sequência de investimentos.

Esse aprendizado é uma das maiores fortalezas dos OP’s, pois todos os setores sociais integrados nos processos de discussão e deliberação trazem consigo o seu conhecimento acumulado e, sobretudo, acessam o poder de incidir sobre a aplicação da parcela de recursos colocados em discussão, algo que de outra forma não seria possível. 

O reconhecimento das comunidades atuantes nos OP’s como portadoras de um conhecimento valioso, que já existia, mas não era reconhecido, torna o espaço público mais confiável e atrativo à participação e mais próximo da vida concreta das pessoas, mostrando a importância da noção da ecologia dos saberes[9], desenvolvida pelo professor Boaventura Santos.

 

A participação precisa de instituições mais permeáveis

Os 17 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODS) e suas 169 metas - das quais mais da metade possuem relação com políticas urbanas, servem como um verdadeiro guia para a nossa reflexão e ação.

Esses objetivos e metas nos remetem a um modelo de cidade que reduza as desigualdades sociais, regionais, econômicas, valorize nossa diversidade cultural, incorpore os cidadãos nos processos de deliberação e torne as cidades lugares de promoção da qualidade de vida para todos.

Há alguns critérios que a experiência tem mostrado como decisivos para a conquistar a confiança das pessoas nesses processos: a existência de regras claras, recursos previamente definidos, espaço assegurado para as diferentes opiniões, execução dos acordos realizados e compromisso dos governos em respeitar as decisões.

Outro indicador importante é a permeabilidade das estruturas institucionais à participação da população, pois, em grande parte, isso ajuda a definir as regras que irão influenciar a “configuração dos processos participativos. Questões como: a) quem participa (inclusividade), b) em que condições (igualdade), c) qual o poder real (efetividade), d) quais os temas discutidos (distributivismo), e) qual o nível de controle do processo (accountability), são elementos analisados”.[10]

Mesmo que os orçamentos participativos não esgotem o conceito de democracia participativa, há uma relação direta entre ambos. É na democratização do poder de decisão sobre os recursos que a democracia participativa inova e ganha as condições necessárias para alterar o desequilíbrio de poder que a concentração de renda subtrai das maiorias.

 

Orçamento participativo e a transição socioambiental

O desenho institucional por si só, no entanto, não é capaz de nos colocar no caminho da transição ecológica, pois esse avanço exige compreendermos a cidade como um compósito social, político, cultural e ambiental, o que significa dizer que a gestão urbana é um desafio socioambiental.

O que requer a integração das políticas públicas e o conhecimento dos fluxos naturais e construídos que configuram o território da cidade e asseguram o abastecimento dos bens imprescindíveis para a vida, como água, alimentos, energia, qualidade do ar, assim como emprego, saúde, educação, habitação, cultura, mobilidade, etc.

Na realidade das cidades, os bens naturais e construídos se entrelaçam de tal forma que, até metodologicamente é difícil de distingui-los. Esse conjunto de sistemas de engenharia que o homem vai superpondo à natureza, é que dão às cidades uma configuração territorial, de acordo com Milton Santos[11]. E essas redes construídas passam a ser tão elementares ao cidadão urbano quanto os demais elementos “naturais”, constituindo uma realidade que vincula de forma indissociável sociedade e natureza. Creio que essa compreensão seja o ponto de partida para pensarmos políticas e ações comprometidas com uma transição ecológica. 

É claro que os OP’s não são uma panaceia.

Mas o inestimável e já robusto trabalho de colaboração, estudos, incentivo e financiamento às práticas de OP’s que estão sendo realizados pelos governos comprometidos com os processos de democratização das decisões, como a cidade de Grenoble, nossa cidade anfitriã, e por importantes redes internacionais, como o Observatório Internacional da Democracia Participativa (OIDP), a Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), o Fórum das Autoridades Locais pela Inclusão Social e Democracia Participativa (FAL), a Rede Mercocidades, mostram que a transição socioambiental está dando passos concretos em cada uma dessas milhares de experiências.

São tantos os exemplos de boas práticas e respostas eficazes produzidas a partir dos processos democráticos que incorporam novos sujeitos nos processos de discussão e deliberação, que podemos afirmar sem receio de que as alternativas para a mudança de ruma já estão em curso.

O esforço que está sendo feito para aumentar a integração e a colaboração entre essas experiências, é fundamental para que os processos democráticos ganhem a escala narrativa que a suas práticas já alcançaram como uma alternativa efetiva para superar o descompasso no cumprimento dos acordos internacionais e suas metas.

Lembro muito bem o quanto foi importante para o OP em Porto Alegre o apoio e o reconhecimento de tantos governos, instituições, pesquisadores e movimentos sociais, que nunca deixaram que nos sentíssemos solitários.    

A diversidade, tanto ambiental, quanto social, devem ser compreendidas como orgânicas uma à outra. Assim, poderemos levar à risca a diretriz das Nações Unidas, de “não deixar ninguém para trás”. Essa deve ser a nossa principal guia nesta travessia rumo à transição ecológica, sempre que tivermos dúvidas sobre qual decisão tomar, pois apenas podem ser consideradas sustentáveis, aquele “conjunto de práticas, portadoras da sustentabilidade no futuro”[12].

Gostaria de concluir contando uma situação ocorrida nas discussões iniciais do OP em Porto Alegre, que reputo como uma decisão fundamental para construir a confiança da população na experiência nascente.

Depois de realizado o primeiro ciclo do OP, que envolvia as decisões tomadas nas 16 plenárias regionais e as discussões no Fórum de delegados eleitos nessas plenárias, ficou claro que a prioridade definida pelo OP para o saneamento básico, estava em contradição com a prioridade dada ao transporte público na nossa campanha eleitoral.

Isso nos colocou diante de dilema ético e político, pois ao mesmo tempo em que não queríamos deixar de cumprir a prioridade que havíamos apresentado no processo eleitoral, estávamos igualmente comprometidos com o respeito ao processo de deliberativo do nascente OP. Diante do dilema das prioridades diferentes, decidimos que outros dois compromissos de campanha deveriam prevalecer: a democratização da gestão e a inversão de prioridades na aplicação do orçamento público.

Não foi uma decisão fácil, mas ao abrirmos mão daquilo que achávamos ser a principal necessidade da população e respeitarmos a sua prioridade decidida no processo democrático do OP, foi dada uma potente sinalização para as comunidades de que poderiam, de fato, confiar no compromisso do governo em respeitar as suas decisões. 

A partir daí, o debate público na cidade abriu espaço para o que o educador brasileiro, Paulo Freire, chamou de a “força criadora do aprender e, portanto, de transformar”[13], da qual todo o ser humano é dotado.

Obrigado!!

 



[1] ARISTÓTELESPolítica. São Paulo, SP: Martin Claret, 2007.

[2] Mumford, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. SP: Martins Fontes, 1998.

[3] Acselrad, Henry (org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001

[4] Cabannes, Yves (org.), 2020: Contributions of Participatory Budgeting to climate change adaptation and mitigation: Current local practices around the world & lessons from the field. Disponível em: https://www.oidp.net/pt/content.php?id=1716

[5] Cabannes, Yves: Another city is possible with participatory budgeting / Yves Cabannes (ed); foreword, Anne Hidalgo, Mayor of Paris

[6] Dias, Nelson e Júlio, Simone. 30 Anos de Orçamentos Participativos no mundo. Oficina. Disponível em: file:///C:/Users/Gerson/Desktop/30%20ANOS%20DE%20OPs%20NO%20MUNDO_NELSON%20DIAS.pdf

[8] “Um Ecodespertar: Medindo a consciência global, engajamento e ação pela natureza“,  Disponível em: https://wwfbr.awsassets.panda.org/downloads/wwf_eco045_report_on_nature_pt.pdf

 

[9] Santos, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008.

[10] Fedozzi, Luciano, Ramos, Marilia Patta e Gonçalves, Fernando Gonçalves de. Orçamentos Participativos: variáveis explicativas e novos cenários que desafiam a sua implementação. Disponível em: file:///C:/Users/Gerson/Downloads/78505-309789-1-PB.pdf

[11] Santos, Milton. A urbanização Brasileira. São Paulo: EDUSP, 2005

[12] Acselrad, Henry (org.). A duração das cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

[13] FREIRE, P.; NOGUEIRA, A. Que fazer: teoria e prática em educação popular. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989.